Era por volta de duas da manhã quando o Rodrigues apareceu no velório da Izilda e deu um grito.
- Aaaah, Zildinha Maravilha, que saudades de você.
T odos do velório voltaram suas cabeças para ele, “Quem é esse?", alguns cochichavam, “Nunca vi mais gordo”, outros retrucavam. O senhor, que não queria fazer todo aquele alarde, logo se esquivou para um dos cantos do ambiente e passou a observar tudo com atenção. O coitado não queria ser o centro das atenções, mas quando viu a senhora Izilda deitada ali como presunto, não pode conter suas emoções.
Um dos filhos de Izilda, muito curioso sobre quem poderia ser aquele senhor, resolveu se aproximar do idoso e dirigiu-lhe a palavra.
- Oi, como vai?
- Como vai, meu querido. Acredito que seja, Luizinho, não?
- Sou eu mesmo, Luiz. Não me chamam assim há muito tempo.
- Sua vó falava de você dessa mesma forma, até pouco, pouco tempo.
- Minha vó não fala direito há muito tempo.
- Pois faltava que falassem direito com ela.
- Quem é o senhor, aliás?
- Almiro Rodrigues, o primeiro e mais fiel cliente de Izilda.
- Ah, sim. O senhor comprava flores com ela?
- Não, mas vi sua flor desabrochar muitas vezes.
- Como é? - retrucou Luiz com voz embargada de ódio.
- Fiz muitos programas com dona Zildinha Maravilha. Que mulher fogosa!
Algumas pessoas próximas deram gritos ao ouvir tamanho absurdo. O rosto de Luiz logo se corou, a raiva lhe subiu aos olhos e a boca projetou a voz com rispidez.
- Dá onde tirou tamanha sacanagem?
- Tirei das noites com Zildinha, sacanagem era só o que fazíamos, de fato. Olha aqui, Zildinha Maravilha nos jornais.
Rodrigues tirou um pedaço de um folheto de jornal que estampava uma foto da vó Izilda com seus 20 e poucos anos, rodeada de flores, usando um maiô provocador e anunciando seus serviços “Zildinha Maravilha, você vai querer cair nessa armadilha".
Luiz não conseguia acreditar, aquela era mesmo a sua avó. O rosto idêntico ao de sua mãe não enganava, a pinta em sua bochecha esquerda estampava aquele crime para a família toda ver. Logo uma multidão foi se aglomerando ao redor do folheto, mudando por alguns instantes o foco principal daquela triste sala - do caixão para o anúncio que Rodrigues segurava em mão. Alguns de seus parentes viam o anúncio e se esbranquiçavam mais que o próprio cadáver, caíam ao chão e precisavam de reforços para que fossem levantados.
- O que é isso? Dona Izilda não era dona de floricultura?
- Até que tem bastante flor… na virilha.
Ninguém podia acreditar no que via. Zildinha, a senhora fofa da floricultura que enchera um velório por sua causa, enchera também o seu quarto de homens diferentes todas as noites, na juventude. Seus netos não podiam acreditar, suas filhas, menos ainda.
- Por quanto tempo ela fez isso?
- Durante a vida toda. Estive com ela semana passada.
- O QUEEE??
Indagou a filha com voz estridente enquanto levava as mãos ao peito e caia para trás, mais uma ia ao chão. Era a terceira vítima daquele tiroteio de safadeza.
- Depois dos 60, eu era o único cliente. Pagava sempre em dia, não pendurava a conta… só a meias na maçaneta do meu quarto.
- Vovó traia vovô? Que Deus o tenha - pontuou um dos netos com voz de choro.
- Não, não, não - retrucou Rodrigues - nada de traição, meu querido. Ela sempre foi uma “lady” com relação a isso, separava bem as coisas: minha vez era só minha e a do seu avô, só dele. Sem traições.
Contando com o neto da velha, era o quarto que deitava o corpo no chão involuntariamente como resposta àquela atrocidade que ouviam. Aquele enterro virou um chá revelão de putaria.
Passado um bom tempo, já amanhecia, e depois da intervenção de alguns padres e rabinos, uns netos e amantes. Pós uns “ave-marias” e uns “cruz credos”, o clima se apaziguou. Os netos já voltavam a chorar pela morte da velhinha e não por uma vida fora da casinha. Quando de repente uma criança, o filho da prima da vizinha aponta para o nariz de Luizinho e diz.
- Luizinho, não é que você tem o mesmo nariz que esse moço Rodrigues.
Sonho de pescador.
Eu gosto de acordar cedo para pescar, é minha atividade favorita. O único momento que estou sozinho com meus pensamentos, só eu, Deus e o peixe no anzol. Às vezes, uma garra de vinho me acompanha, às vezes paro para ouvir o canto dos pássaros, às vezes sinto o sol quente queimando minha pele, e isso me acalma. Esse é meu sagrado e isso ninguém me tira.
Um dia desses, eu tô andando pela rua e dou de cara com o filho de um dos peixes que pesquei. Com aquele olhar esbugalhado, ele me fitou e me trucou.
- Eai, meu irmão!
- Oi - respondi com a estranheza que um ser humano responde um peixe.
- Cadê meu pai?
- Virou pescada - respondi com sinceridade.
- Eu sei. Disso eu sei. Mas eu fiquei sabendo que você fritou de qualquer jeito e deu pro cachorro.
- Como ficou sabendo disso?
- Tenho meus contatos.
- E por que te incomoda?
- Venho de uma família nobre, sushi especial, merluza, salmão trufado com ovas e arroz d’ouro. Só peixes de altíssima qualidade, e você deu meu pai para o cachorro?
- Como tá falando comigo fora d’água?
- Você ta sonhando, meu irmão. Não percebeu?
Na hora me deu um estalo.
- E tá dentro da água ainda, vacilão.
Quando olhei ao meu redor, estava mesmo dentro do mar. Olho para cima, e minha mãe passa nadando abraçada com meu professor de educação física da época do colégio. Dentro de um dos prédios daquela avenida, eu podia ver a sala de aula que estudei no jardim de infância, e ali acontecia uma cena constrangedora: eu estava na escola, mas com um detalhe… estava sem calças. Todos me viam pelado e riam da minha cara. Voltei meu olhar para o peixe e perguntei.
- Como eu saio daqui, cara? E como é seu nome, aliás?
- Meu nome é Astolfo. E eu não se como você sai daqui, mermão. O último doido com essa cara de assustado aí, sonhou que beijava a própria tia, saiu correndo alucinado e ficou preso nesse quarteirão por anos.
- Pra onde eu vou?
- Sei lá. Pergunta pro gordão.
- Que gordão?
Quando eu olho para o lado, eu me deparo com meu pai. 200 quilos mais gordo, usando um terno fajuta, na porta de uma balada, que estava com fila quilométrica.
- Dá onde saiu essa fila?
Eu vou em sua direção e pergunto.
- Pai? Tá fazendo o que aqui?
- Não sou seu pai, meu nome é Latrel, se quiser entrar vai pro fim da fila.
- Latrel? Do filme “As Branquelas"?
- Não sei do que você tá falando. Fim da fila, meu querido - respondeu com tom irônico.
Fui então para o fim da fila, como um cão abandonado; com as orelhas baixas e o rabo entre as pernas. Devo ter ficado umas 2 horas ali refletindo e tentando entender o que acontecia.
Quando chegou minha vez, meu pai estava abraçado com duas mulheres bem bonitas e não estava nem aí para fila, qualquer um podia entrar.
- Giovanna? - percebo perplexo que uma delas é minha ex namorada.
- Mayara? - Minha outra ex - O que vocês tão fazendo aqui?
- Quem é você, garoto?
Meu pai dá um tapão na bunda de uma delas enquanto eu sou empurrado para dentro da festa. Lá dentro é som alto, gente estranha e eu não consigo enxergar nada.
- Lucinda? - espremo os olhos para enxergar.
Era a mulher que recolhe os dízimos da igreja em que frequento. Lá estava ela, rebolando a bunda em um garoto de 25 anos.
- Ah, cara. Pra mim já deu.
Neste momento, sinto um pingo no meu olho. Parece que começou a chover dentro da festa; a coisa começa a apertar. Quando a chuva piora, eu acordo no meu barquinho, confuso, sem entender nada. Do meu lado, uma garrada de vinho. “Eu tomei ela inteira?”. A dor de cabeça responde a minha pergunta imediatamente. O mar está revolto, e parece piorar a cada minuto. Eu pego meu remo, coloco para dentro do barco e começo a rezar, não há mais anda a fazer. Até que uma onda gigantesca pega o barco em cheio, eu apaguei.
Quando acordei, eu estava em um hospital, a primeira pessoa que vejo é minha mãe.
- Mãe?
-Filho, você acordou, graças a Deus.
-Meu professor de educação física ta aí?
-Não filho, que?
A enfermeira olha para minha mãe e responde.
- São os remédios. É normal a alucinação, senhora.
Quando meu pai entra na sala seguida das minhas duas ex namoradas.
- Aaaaaah!!!
Dei um grito altíssimo.
- Que foi? - respondeu Giovana.
- Achei que tava tudo bem entre a gente. Viemos ver como você está. A gente ficou preocupada - completou Mayara.
-Desculpa, gente, eu tive um sonho esquisitíssimo.
-O que é isso? Fila pra ver meu filho? - respondeu meu pai - Vai pro fim da fila, Gi, vai pro fim da fila, Mayara. Deixa eu falar com meu menino.
-Aaaaaaaaaaah - só me restou gritar mais uma vez.
Cachorro no CIO late mais alto.
Eu moro em um prédio antigo, moradores antigos, instalações antigas, porteiro antigo, tudo velho, mas essa semana chegou o cachorro novo da vizinha de cima. Ela me contou no elevador que virou vó, e resolveu comprar um daqueles pinschers chatos para agradar à neta. A história da criança que cresce com o cachorro. Tudo muito lindo, muito fofo… se o cachorro não parasse um minuto de latir. Ele late de manhã, late a tarde e late a noite, late quando eu quero me concentrar para escrever, late quando tô vendo um episódio novo da minha série e late até quando eu tô transando. Principalmente quando tô transando.
Sim, esses dias, eu tava em um daqueles dias com a minha mulher; ela tinha voltado de uma viagem longa que fez à trabalho e me fez uma surpresa, uma lingerie novinha, lindíssima. Tomamos vinho, comemos um belo de um macarrão, ouvimos jazz e dançamos juntos na sala de estar. Quando levamos a brincadeira para o quarto e eu fui dar a primeira bimbada, “Au, Au, Au, Au”, o cachorro da vizinha começa a latir como um louco. E o bicho não para - parecia até ironia, porque em certo momento os latidos se sincronizaram com a transa. Se eu parasse, ele parava também, quando eu voltava, ele também voltava a latir, no mesmo ritmo, harmonia e intensidade que eu.
- Ritinha, nós escolhemos não ter filhos para curtir nossa vida, ter privacidade, transar no chão da cozinha. E agora é o cachorro da vizinha que nos atrapalha? Não vai dar não. Eu vou lá reclamar desse cachorro.
Minha mulher não gostou muito da ideia, ela é coração mole, mas eu fui duro mesmo assim. Literalmente…duro. Eu sou uma pessoa educada, não ia dizer nada que não quisesse que falassem para mim.
- Toc, Toc, Toc, Toc.
- Oi, meu querido, tudo bom? - respondeu à senhorinha.
- Oi, dona Elmira, tudo bom? - respondi de forma seca, mas educada.
- O que te traz aqui, essa hora?
- É que não consigo dormir, essa hora.
- Dormir, né? - respondeu desconfiada - quer um Rivotril?
- Não quero não, obrigado. Eu quero mesmo é que seu cachorro pare de latir pra eu dormir.
- Olha, meu amorzinho, eu vou ser sincera com você sobre uma coisa. Eu menti.
- Mentiu sobre o que?
- Menti sobre o pinscher.
- O que tem ele?
- Que neta, que nada. Eu comprei ele pra disfarçar o barulho das suas bimbadas. Vocês são sonoros, né? Eu diria até musicais.
- Ãhn, que? - fiquei envergonhado.
- Parece uma banda de rock, querido. Às vezes é samba e eu ouço o tamtam até de manhã. Tem hora que tá mais pra um jazz, um tal de sopra aqui, sopra ali, dedos aqui, dedos pra lá.
- Olha, dona Elmira, eu te respeito muito. Mas como um cachorro faz menos barulho que a gente lá em cima?
- Não é questão de barulho, meu amor. É que eu fico com inveja da sua mulher. Que dona de sorte, ela, hein - disse com a voz serena, enquanto passava a mão no meu braço.
- Como foi que você treinou um cachorro pra latir no ritmo do nosso sexo?
- Eu tive que chamar os melhores profissionais, fácil não foi. Foram 6 longos meses de fitas pornô e o cachorro latindo para lá e para cá, como se fosse uma orquestra.
- Bom, não deu tão certo assim, porque ele late o dia todo, não só quando a gente transa.
- A tarde ele late por chatice própria mesmo. Acho que o treinamento não fez muito bem para a cabecinha dele.
Aquela conversa continuou por mais alguns minutos e não deu em nada, subi e expliquei tudo para minha mulher. Ela não pôde acreditar. Resolvemos aceitar aquela situação, não estávamos 100% certos. A velha foi meio louca? Sim. Mas se estávamos fazendo barulho, e incomodando os vizinhos, precisávamos maneirar, de fato. Aquilo nos constrangia um pouco, e também nos orgulhávamos, um pouco.
Certo dia, eu estava bem excitado, resolvi mandar uma mensagem para minha esposa preparando-a para o que vinha a noite. Ela loga se animou, e a noite fomos quentes. Mas tudo silencioso, tudo meio como se estivéssemos fazendo uma coisa errada. Foi maravilhoso do início ao fim, a coisa foi se prolongando, prologando, crescendo, crescendo, até que chega o ápice. “Au, Au, Au, Au”. Nessa hora não deu, ela gritou, o cachorro latiu junto…eu lati junto. “Au, Au, Au, AUUUUUUUH!” uivava como um lobo. Estava maravilhado, era o tempero extra que eu precisava para alimentar minha relação. Sexo escondido, e o prazer animal estava a tona. Virei um cachorro e minha mulher, uma cadela.
Algumas semanas se passaram e o sexo silêncios não havia perdido a graça, eu vivia com vontade e minha esposa também. Era como se estivéssemos nos apaixonando de novo, jovens animais, não castrados, no cio. Minha mulher também mudou, trabalhava até mais tarde, porque estava cheia de energia das nossas transas. Chegava feliz para me ver, animada, cheirosa e às vezes até mais arrumada do que saía.
Um dia desses, fiz uma surpresa para ela, disse que passaria o dia fora de casa para resolver umas coisas do trabalho, mas fui buscar um brinquedinho para apimentar nossa relação. Na volta, passei na dona Elmira, tinha que agradecer a ela por ter melhorado tanto a nossa relação.
- Toc, Toc, Toc. Olha, muito obrigado pelo que você fez com a gente.
- O que eu fiz? - respondeu confusa.
- Olha, você acendeu uma chama no meu relacionamento. Eu nunca estive melhor, nós não fazemos mais barulho. Realmente estávamos incomodando vocês. Agoro somos mais silênciosos, essas coisas são privativas, sabe? A coisa esquentou lá em casa.
Enquanto eu falava, o cachorro começava a se atiçar. Ele rosnava, até que começou a latir. Latia, latia, latia, olhando para o teto.
- Ele só late assim quando vocês transam, faz semanas que não late assim.
“Au, Au, Au, Au, Auuuuuuuuuh”